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Cotas e incentivos

Os resultados do vestibular da UFRGS tem novamente gerado discussões a respeito da política de cotas. A adoção de um sistema de cotas pela UFRGS, no qual 30% das vagas foram reservadas para candidatos egressos de escolas públicas, sendo que metade dessas para negros auto-declarados, desde que atingissem certo patamar mínimo, gera enorme polêmica principalmente agora. Muitos candidatos, que seriam aprovados caso não existisse essa política, sentem-se injustiçados e pretendem entrar com um processo contra a universidade. As denúncias poderiam se basear no princípio constitucional da isonomia.

Sem querer discutir a justiça ou não de tal sistema, uma análise dos incentivos de um sistema de cotas no médio prazo pode ser interessante para entender que possíveis reações ela pode provocar. Uma das possibilidades seria uma alteração na demanda das famílias por escolas particulares: passa a valer menos a pena pagar uma escola cara para o filho, uma vez que há reservas de cotas para alunos de escolas públicas. A volta de alguns alunos da classe média para a escola pública pode inclusive melhorar o ensino através do protesto dos pais, uma vez que pais de classe média detêm muito mais poder de pressão que pais pobres. Tal resultado não é certo no entanto, porquanto os pais que mudam os filhos de escola podem ser justamente os que se interessam menos por educação e, portanto, teriam pouca motivação para protestar - uma espécie de seleção adversa na teoria microeconômica. Tudo isso depende de como eles avaliam a desvantagem causada pela política de cotas. Se eles acharem muito prejudicial, mais numerosos e motivados pais optarão pela escola pública, podendo provocar alguma mudança positiva - maior cobrança da classe média pode resultar em ações mais efetivas do governo (ver Hirschman em "Exit, Voice and Loyalty", de 1980).

O ponto é: a classe média estará interessada em melhora do ensino com a existência de cotas? Que fatores levam os pais a aprovar ou não um sistema de ensino - os resultados práticos em termos de vestibular ou o ensino e o ambiente do colégio em si? Ou melhor, em que ponto entre esses dois extremos os pais se colocam em geral?

Atualmente, sou contra as cotas, principalmente as raciais. A distorção no sistema é muito grande, o custo político de manter e de acabar com tal política no longo prazo é alto, sem contar que serve para não solucionar o verdadeiro problema: a qualidade da escola pública. A única possibilidade seria alguma melhora devido a uma maior demanda dos pais de classe média, mas tendo a acreditar que a seleção adversa seria forte e que os resultados em termos de vestibular importam mais do que a qualidade do ensino em si - logo, cotas apenas desviam a atenção do problema principal, a falta de qualidade do ensino público, o qual poderia prover maior igualdade de oportunidades. Aparentemente, no Brasil, sempre tenta-se solucionar o problema não tratando do problema: cria-se um outro pra ver se resolve o anterior.

Comentários

Anônimo disse…
Caro Thomas,
Tenho uma dúvida sobre o mestrado na USP. Eu gostaria de saber como é o horário das disciplinas (qual é a sua rotina ? Você fica o dia inteiro na USP ?) e quantas disciplinas por semestre você faz. Outra dúvida é se existe diferença no horário (e na rotina) entre o primeiro e o segundo ano.
Só para registrar: parabéns pelo blog e pelo tema da sua dissertação, muito interessante.
Thomas H. Kang disse…
Caro Henrique,

Pode-se identificar melhor se quiser!

Respondendo a pergunta, que na verdade é de outro post (sem problemas): no primeiro ano, é comum muitos ficarem o dia inteiro na USP estudando. O primeiro semestre do mestrado principalmente exige muita dedicação. Por semestre, é comum fazermos três disciplinas no primeiro ano. Como fazemos uma disciplina no verão e mais seis ao longo do ano, são 7 disciplinas que devemos fazer, sendo 4 delas obrigatórias - as outras três você escolhe.

No segundo ano, fica a seu critério fazer disciplinas. Em geral, as pessoas fazem nenhumaou uma disciplina para poderem se dedicar melhor à dissertação.

Se tiver mais dúvidas, é só mandar.
Abraço e agradeço pelos elogios.
Anônimo disse…
Caro Thomas,
Agradeço muito as respostas dadas, ajuda para saber o que me espera (supondo, obviamente, que eu passe na ANPEC).
Agora me identificando: sou aluno do último ano de Economia (noturno) da USP. Pretendo prestar ANPEC no final do ano e tenho interesse nas áreas de crescimento/desenvolvimento (com destaque para o papel das instituições), macroeconomia em geral e economia social (em especial, economia da educação).
Já faz alguns meses que frequento seu blog com freqüência e aprecio a qualidade dos posts e das discussões.
Para facilitar a identificação, passarei a assinar HenriqueUSP em eventuais futuros comentários.
Obrigado.
Thomas H. Kang disse…
Legal, Henrique!
Tuas áreas de interesse curiosamente são bem parecidas com as minhas. Qualquer coisa, se tu me ver por aí na FEA em março, pode me parar pra conversar.

vamos ver se eu continuo postando acerca desses assuntos interessantes.

Até.
Felipe Garcia disse…
Prezado Thomas,

Ao observar os resultados do ENEM para as escolas de Porto Alegre, verifica-se que não mais do que 10 das escolas particulares apresentaram resultados superiores relevantes. Isto posto, com a adoção das cotas, uma migração de alunos de escola privada para pública não seria nenhuma surpresa a médio prazo. A lógica é simples e amplamente alicerçada na racionalidade econômica.
Levantaste um ponto importante sobre uma possível melhora da qualidade do ensino público. Creio, assim como você, que ainda nada poderemos dizer sobre essa questão, pois a demanda por qualidade de educação dos pais dessas crianças que migrarem de escolas particulares para públicas é desconhecida.
Enoch disse…
Agora me lembrei de uma coisa:

Durante o ensino médio (segundo grau ou científico, como chamávamos) tive dois colegas que estudavam num colégio particular e num público ao mesmo tempo.

Assim eles tinham acesso a uma boa educação e os pais não precisavam pagar recuperação!

Mãe esperta, hein? E olha que naqueles anos, por volta de 1995, não se ouvia falar em cotas...

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