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Críticas que não entendo (1) - (cont.)

Em primeiro lugar, acho melhor esclarecer que, quando falo de equilíbrio, não estou especificamente falando do equilíbrio geral. Embora eu mesmo não veja o equilíbrio geral como algo nefasto à economia, até entendo que tenha gente que não goste. A prova da existência de equilíbrio geral (Arrow-Debreu) é bastante complexa e abstrata. Ainda, em um tópico que não estudei, apresenta problemas (Teorema Sonnenschein-Mantel-Debreu, MWG cap 17). Mas isso não significa que é inválido.

Falando de equilíbrio em sua forma mais simples, pensemos em um simples equilíbrio de mercado com a curva de oferta cruzando a de demanda, determinando preços e quantidades. Alguém ser contra isso é difícil entender. Uma coisa estimável, aplicada, com inúmeros estudos e altamente esclarecedora. Uma ferramenta simples e poderosa. 

Em segundo lugar, falaram que muita gente seria contra o equilíbrio geral, incluindo Amartya Sen. Vamos deixar claro que Sen não é um heterodoxo (quem ganha Nobel é ou tornou-se ortodoxia, pelo menos da época que ganhou). Ele foi presidente da Econometric Society, um cargo que qualquer um que se considera heterodoxo não gostaria de estar (aliás, não vejo produtividade alguma no debate ortodoxia vs. heterodoxia. Acho que devemos debater assuntos, mas não como se eu estivesse defendendo o Grêmio contra o Inter). No entanto, ele tem uma das críticas mais contundentes à economia do bem-estar especificamente. Por ser contundente e profundo é que ele tem o respeito de tanta gente. Vejamos o que ele diz sobre equilíbrio e ótimo de Pareto:

"Uma importante proposição [...] é o chamado 'Teorema Fundamental da Economia do Bem-Estar [...] Esse teorema mostra que, em determinadas condições (especialmente ausência de 'externalidades', isto é, de interdependências que sejam externas ao mercado), cada equilíbrio perfeitamente competitivo é um ótimo de Pareto e, com algumas outras condições (especialmente ausência de economias de escala), cada estado social Pareto-ótimo é também um equilíbrio perfeitamente competitivo em relação a algum conjunto de preços [...]".

Ótimo, ele explicou o teorema (ver também MWG, cap. 16). E Sen continua:

"Esse é um resultado notavelmente elegante, que permite discernir profundamente a natureza do funcionamento do mecanismo de preços, explicando a natureza mutuamente vantajosa da troca, produção e consumo regidos pelo auto-interesse. Um aspecto significativo das relações econômicas via mecanismo de mercado foi esclarecido por esse resultado e outros afins".

Posteriormente, ele ainda afirma (e sei que ele trata disso também em outras obras):

"A estrutura de raciocínio conseqüencial e a investigação de interdependências extensivamente desenvolvida em economia em muitos contextos (inclusive o da análise de equilíbrio geral, examinado no capítulo 2) facilita o discernimento quando investigamos os inescapáveis problemas de interdependência envolvidos na apreciação do valor dos direitos em uma sociedade".

A partir de Sen, não jogamos o equilíbrio fora (seja ele geral, parcial, enfim). Muito pelo contrário, são muito úteis. O ponto é que não é suficiente, principalmente para fins de avaliação de políticas e em relação a conteúdo ético, que Sen defende que deva existir quando falamos de desenvolvimento.



Trechos de Amartya Sen retirados de "Sobre Ética e Economia" (p. 50-51; 89)
MWG é referência a Mas-Collel, Whinston and Green (1995). "Microeconomic Theory".

Comentários

Prezado Kang,

foram muito esclarecedoras as citações que você fez de Amartya Sen.

Após descrever a relação entre equilíbrio GERAL e alocações ótimas de Pareto, ele diz que esse raciocínio [neoclássico] é elegante e permite discernir importantes aspectos do funcionamento do mercado. Como o o acesso ao mercado é, para ele, uma das liberdades fundamentais, será útil qualquer raciocínio que comprove os aspectos vantajosos da troca.

O teorema fundamental do bem-estar mostra basicamente que qualquer equilíbrio geral é ótimo de Pareto. Como o equilíbrio geral, ou perfeitamente competitivo, deriva do comportamento racional auto-interessado, esse tipo de comportamento levaria a uma situação ótima sob o ponto de vista da eficiência econômica.

O interessante é que Sen acha que o teorema neoclássico levou a uma conclusão normativa defensável, qual seja a de que a liberdade de mercado deve ser garantida, *apesar de ele não achar que o ótimo de pareto valha muita coisa para a economia!* Nas palavras dele:

"A otimalidade de Pareto, como "o espírito de César", pode 'vir quente do inferno'*"

E a correspondende nota de rodapé: "*(...) Sen está aludindo ao potencial devastador da otimalidade de Pareto, como o do espírito de Júlio César, que, no discurso de Marco Antônio, haverá de retornar do inferno e tumultuar toda a Itália. (N.T.)" (mesmo texto, p.48)

Mais precisamente, o raciocínio do teorema diz que A (auto-interesse) leva a B (equilíbrio competitivo), e B leva a C (ótimo de Pareto); como C é bom (premissa ideológica do racicínio neoclássico), A deve ser maximizado. Sen concorda com a conclusão final, apesar de discordar frontalmente da principal premissa do racicínio, qual seja, a de que C é bom. Por que ele faz isso?

Ele mesmo explica na terceira citação: porque a estrutura do raciocínio neoclássico facilita o discernimento. Nada mais.

Para ele, "o campo para dizer algo interessante em economia do bem-estar tornou-se reduzidíssimo." E "uma importante proposição nesse território exíguo [insuficiente, escasso, diminuto, limitado, segundo o Michaelis] é o chamado 'teorema fundamental da economia do bem-estar' (...)".

Ou seja, o teorema é insuficiente, diminuto e limitado, mas leva a uma conclusão normativa "notavelmente elegante" e usa um tipo de raciocínio útil.

Assim, é verdade que a partir de Sen o raciocínio do equilíbrio GERAL é muito útil. Eu também o acho muito útil (para algumas conclusões normativas às quais sou favorável e para um raciocínio relevante), pelas mesmas razões que Sen. E a maior parte dos críticos do equilíbrio GERAL certamente concordará. Pois disso não decorre que o equilíbrio geral seja uma boa aplicação para entender a maior parte dos fenômenos econômicos.

No que concerne ao estudo do desenvolvimento humano (que a economia neoclássica confunde com crescimento econômico), é relevante para a corrente ortodoxa o equilíbrio geral walrasiano, e não o equilíbrio parcial. Em particular, se maximiza intertemporalmente uma função de bem-estar, por meio do procedimento de desconto e numa plataforma de equilíbrio geral, para se deduzir a trajetória ótima do consumo. Isso seria suficiente para se determinar políticas econômicas "ótimas".

Amartya Sen joga no lixo essa maneira de se pensar sobre política econômica porque o seu conteúdo ético é inexistente. Ele inaugura toda uma nova corrente de pensadores de política econômica, pois apresenta um instrumental analítico que eu não posso chamar de outra coisa senão revolucionário.

A discussão sobre ele ser ou não ortodoxo, heterodoxo ou mainstream, é pouco importante. Pessoalmente, vejo que ele navegou como poucos na economia convencional, e mais tarde encontrou o seu próprio rumo, incrivelmente bem fundamentado, portanto merecedor do Nobel.

Resumindo: não é possível adotar ao mesmo tempo a perspectiva de Sen para o estudo do desenvolvimento e a perspectiva da economia neoclássica para o estudo do desenvolvimento. Aceitar a primeira significa negar a segunda. Apesar de não significar, necessariamente, negar a perspectiva da economia neoclássica para o estudo de outras coisas.
Thomas H. Kang disse…
Em linhas gerais, concordo com o final do seu comentário. Valeu pelo comentário. De fato, Sen apresentou uma proposta nova e interessante de estudo do desenvolvimento econômico. Quem acompanha esse blog, como tu, sabe como gosto da perspectiva dele.

Quanto aos aspectos aparentemente contraditórios de Sen, acho que não há problemas na verdade. Sen gosta da proposição teórica mais positiva de que todo equilíbrio competitivo leva a um ótimo de Pareto. Esse teorema mostra que livres mercados chegam nisso sob certas hipóteses, o que é uma conclusão importante. Mas em nenhum momento Sen defende que o mercado não deva sofrer qualquer intervenção. Muito pelo contrário, é justamente por reconhecer a insuficiência da otimalidade paretiana como critério normativo que Sen abre espaço para políticas públicas. Liberdade é muito importante, mas não é um side constraint, como diria Nozick. não é um imperativo categórico. Como o mercado é relativamente mais eficiente, ele tem um papel importante, mas a eficiência de Pareto não tem preocupação com eqüidade. Logo, mercados livres são importantes devido à eficiência, mas intervenções são necessárias para garantir maior eqüidade.

Outra coisa, Sen critica fortemente o foco estreito no auto-interesse como motivação humana única, o que é muito comum em economia. Ele dedica boa parte do capítulo 1 de "Sobre Ética e Economia" para discorrer sobre o tema, recorrendo inclusive a Adam Smith. Logo, Sen não concorda necessariamente com a conclusão final. A proposta de Sen é uma tentativa de sair do utilitarismo.

abraço
Unknown disse…
"não vejo produtividade alguma no debate ortodoxia vs. heterodoxia"

Fala Kang, tudo bem?
Seu blog continua otimo. Gostei muito das citacoes de Amartya Sen. Preciso conhecer mais esse trabalho.

Bem, uma das coisas que nunca entendi na economia - ou fora dela - é exatamente o debate conforme voce citou acima. Isso deve estar linkado o egoismo de alguma maneira. Mas, ainda nao li essa outra discussão/debate sobre egoismo.

Abracos

Soli Deo GLoria

Guto Howe
Thomas H. Kang disse…
bom, sim... tem algo a ver, mas não creio que seja fundamental.
muitos neoclássicos adotaram o egoísmo ético como algo real e certamente quase todos como um pressuposto útil (mesmo sabendo muitos que o comportamento humano vai muito além disso, mas seria uma hipótese simples e produtiva).

O debate ortodoxia heterodoxia é forte no Brasil mas não em outros lugares. De qualquer forma, há outros detalhes metodológicos e com alguma relação com ideologias que separam uns dos outros.

Bom te ver por aqui de novo!

amém,
Thomas

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