Pular para o conteúdo principal

Ética, cooperação e equilíbrios

O papel da ética no desenvolvimento tem sido discutido há muito tempo na história do pensamento econômico, ainda que os advogados do egoísmo ético como Stigler e Friedman continuem a seguir à risca os passos de Mandeville, afirmando que “vícios privados” geram “benefícios públicos”, como bem mostrou Giannetti (Vícios Privados, Benefícios Públicos: a ética na riqueza das nações. São Paulo: Companhia das Letras, 2007). Na economia contemporânea, os benefícios da cooperação passaram a fazer parte da agenda de pesquisa através de trabalhos como os de Olson (1957) sobre ação coletiva, Arrow (1959), entre outros. O recente Nobel dado a Oliver Williamson e Elinor Ostrom também está relacionado a essa agenda. Temas como capital social, em que se destacam Putnam (1993) e Coleman (1988), tem tudo a ver com o papel da ética na economia – em que pese diretamente a contribuição de Sen (Ética e Economia. São Paulo: Companhia das Letras, 1999).

O teólogo Valério Schaper das Faculdades EST me chamou atenção para o fato de que a confiança e a cooperação não seriam necessariamente valores, uma vez que, em uma economia de mercado, esses supostos valores trazem benefícios. Dessa maneira, o argumento fica parecido com a dos defensores do egoísmo ético. Mas essa explicação tem dois possíveis problemas:

(1) por que alguns países estão em um equilíbrio cooperativo ótimo (pensando em termos do “dilema do prisioneiro” da teoria dos jogos), enquanto outros países estão em equilíbrios subótimos?

(2) Onde a cooperação é predominante, o que motiva a ação dos indíviduos? É apenas o ganho posterior que motiva a ação, sendo portanto egoísta, ou há um valor por trás? (Digamos, o indíviduo acha correto ser honesto, sendo honesto mesmo quando acredita que corre o risco de ser prejudicado).

A primeira pergunta merece cuidadosa reflexão. Em países como o Brasil, em que reina o subótimo, parece ser individualmente vantajoso jogar não-cooperativamente – e, portanto, as pessoas passam a perna uma nas outras. Mas em outros países também deveria ser assim então; o que os elevou de patamar? É possível conjecturar que valores como lealdade e honestidade impostos de fora (cultura ou religião) possam ter tido papel crucial nessa passagem de um equilíbrio para o outro. Mesmo considerando que a manutenção do equilíbrio ótimo tenha sim a ver com a percepção de que há benefícios em agir corretamente, é preciso explicar essa passagem – e a ética pode ter sido essa diferença para que pudesse ter havido a ação coletiva necessária para o alcance do equilíbrio superior. E, assim, nesses países há maior confiabilidade no mercado e as instituições funcionam melhor.

A segunda pergunta ainda vale, mesmo quando a sociedade já percebeu os benefícios da cooperação. Certamente há indivíduos que só cooperam porque recebem benefícios, principalmente no momento atual em que valores são relativizados e culturas se chocam com a globalização, mas também certamente há indivíduos que agem por motivações éticas – mesmo que isso os prejudique. A questão da motivação já estava presente em Weber, que separava ações racionais em racionalidade instrumental e racionalidade de valor, enquanto que Sen (1977) em seu “Rational Fools” (publicado na Philosophy and Public Affairs) também ressaltou a importância de se considerar a motivação ética. Esses trabalhos ajudam a mostrar que também não é apenas o sentimento de culpa que move as ações para um suposto comportamento ético – se isso acontecesse, seria apenas mais uma forma de egoísmo ético. Uma análise introspectiva pode muitas vezes mostrar que tem certas coisas que você não faria – e não apenas por medo da culpa - apesar de que fazê-las talvez gerassem benefícios individuais.

Portanto, dizer que a confiança e a cooperação em mercados não representam valor algum pode ser um exagero. Há provavelmente ambos os componentes – tanto o ético quanto o egoísta – no comportamento dos agentes do mercado. Pode ser que isso tenha sim papel na determinação dos equilíbrios. A mudança de equilíbrio parece exigir bastante comportamento ético, embora a manutenção dele talvez exija-o em menor grau.

Comentários

Prezado Thomas, sobre o tema economia institucional busco literatura alem do williamson e coase, buscando um link com sachs.

vc poderia me ajudar encaminhando links de trabalhos? Pode me mandar literatura básica também, para double check.

harmach@uol.com.br

Grato por sua disponibilidade,

Prof. Luiz

Postagens mais visitadas deste blog

Lutero e os camponeses

São raros os momentos que discorro sobre teologia neste blog. Mas eventualmente acontece, até porque preciso fazer jus ao subtítulo dele. É comum, na minha condição declarada de cristão luterano, que eu sempre seja questionado sobre as diferenças da teologia luterana em relação às outras confissões. Outra coisa sempre mencionada é o episódio histórico do massacre dos camponeses no século XVI, sancionado por escritos de Lutero. O segundo assunto merece alguma menção. Para quem não sabe (e eu nem devo esconder isso), Lutero escreveu que os camponeses, que na época estavam fazendo uma revolta bastante conturbada, deveriam ser impedidos de praticarem tais atos contrários à ordem - inclusive por meio de violência. Lutero não mediu palavras ao dizer isso, o que deu a justificativa para a violenta supressão da revolta que ocorreu subsequentemente. O objetivo deste post não é inocentar Lutero do sangue derramado sobre o qual ele, de fato, teve grande responsabilidade. Nem vou negar que Lutero ...

Endogeneidade

O treinamento dos economistas em métodos quantitativos aplicados é ainda pouco desenvolvido na maioria dos cursos de economia que existem por aí. É verdade que isto tem melhorado, até porque não é mais possível acompanhar a literatura internacional sem ter conhecimento razoável de técnicas econométricas. Talvez alguns leitores deste blog ouçam falar muito em endogeneidade ou variáveis endógenas, principalmente no que se refere a modelos econométricos. Se pensamos em modelos de crescimento endógeno, o "endógeno" significa que a variável que causa o crescimento é determinada dentro do contexto do modelo. Mas em econometria, embora não seja muito diferente do que eu disse na frase anterior, endogeneidade se refere a "qualquer situação onde uma variável expicativa é correlacionada com o erro" (Wooldridge, 2011, p. 54, tradução livre). Baseando-me em um único trecho do livro do Wooldridge (Econometric Analysis of Cross-Section and Panel Data, 2 ed, 2011, p. 54-55) ...

Exogeneidade em séries de tempo

Mais um texto de quem tem prova de econometria na segunda-feira. Quem não é economista não deve de forma alguma ler esse texto. Não digam que eu não avisei. Quando falamos de exogeneidade na econometria clássica, estamos falando da chamada exogeneidade "estrita", que nada mais consiste no fato de uma variável x não ser correlacionada com qualquer erro. Nas séries de tempo, no entanto, trabalha-se com três tipos de exogeneidade, dependendo do fim proposto. Na busca de resultados em inferência estatística (modos de estimar parâmetros e formulação de testes de hipótese), utiliza-se, em séries de tempo, o conceito de exogeneidade fraca. Para isso, precisamos 'fatorar a função de distribuição em duas partes: distribuição condicional e distribuição marginal . Define-se que uma variável é fracamente exógena em relação aos parâmetros de interesse se, e somente se, houver um certo tipo de reparametrização e atender duas condições: a variável de interesse precisa ser função de apen...