Do mundo ideal sem Estado advogado pelos neo-austríacos, a passagem para o mundo real é normalmente problemática. É difícil conceber uma situação de extrema desigualdade de recursos econômicos sem que a parcela privilegiada da sociedade utilize desses recursos para criar instituições que lhe favoreça. Uma vez que o poder político momentâneo dessa parcela, derivado de sua renda muito maior, pode desaparecer no período seguinte, é natural que ela crie instituições políticas que permitam a persistência dessa distribuição de poder, que posteriormente beneficiá-la-á economicamente. Afinal, por que a parcela com muito mais recursos que a outra não criaria um Estado que os favorecesse? Talvez porque seja eticamente errado. Difícil. Embora ética possa influenciar o comportamento humano, dificilmente chegaria a esse ponto.
Quando os libertários querem falar do real, acabam tomando posições viesadamente conservadoras na minha opinião (e no mau sentido). Richard afirma que o Bolsa-Família não é um programa de redistribuição de renda, uma ilusão, uma vez que pelo outro lado, o governo estaria distribuindo benesses aos já privilegiados. De fato, isso ocorre no Brasil. Mas o ponto fundamental é que, apesar do desenho insuficiente dos programas assistenciais do governo, melhor com eles do que sem eles. Sem esses programas destinados aos pobres, só teríamos os privilégios. Não quero entrar no mérito do Bolsa-Família. Mas falo de programas redistributivos buscando menor desigualdade em geral. Dizer que programas estatais não devem ser utilizados para diminuir a desigualdade é absurdo na prática da sociedade, uma vez que a elite não costuma deixar de pedir pela manutenção de seus privilégios. Eu sei perfeitamente que tanto Joel quanto Richard são contra qualquer tipo de redistribuição via Estado - tanto pró-elite quanto pró-pobre. Todavia, a minha posição é de que não devemos pensar em uma sociedade ideal e compará-las com a nossa. Nossa noção de justiça não deve ser transcendental, como nos ensina Sen ( "What do we want from a theory of justice", Journal of Philosophy, 2006). Esse vai ser um ponto fundamental do seu livro sobre justiça a ser lançado em breve, contrariando tanto Rawls quanto os libertários.
A pregação da ausência do Estado é irreal e é uma noção transcendental de sociedade. O livre mercado obtém excelentes resultados em termos de eficiência, mas o ótimo de Pareto independe da distribuição. É possível obtermos resultados eficientes com nada para um dos lados e tudo para o outro. O libertário pode até considerar isso justo. No entanto, não pode esperar que um Estado não surja em primeiro lugar nessa situação, nem pode esperar que haja estabilidade política automática. Esquecer a política é tratado teológico. Nesse caso, recomendo "A Cidade de Deus" de Agostinho.
* Perdão pela minha ácida ironia nesse post. Prezo muito o debate com meus amigos Joel e Richard.