O debate tem sido frutífero na questão da violação de direitos naturais. Eu lancei a pergunta com base em Amartya Sen e Richard respondeu a seu modo costumeiramente apriorístico e defensor instransigente de princípios. Renato Drumond resolveu opinar em seguida, contrapondo-se a alguns argumentos de Richard. Dias depois, Joel foi mais conseqüencialista reagindo criticamente às proposições anarco-capitalistas (é no blog do Joel que o debate se concentrou: 14 comentários em dois dias). Logo após, Stein voltou a defender posições mais apriorísticas, à semelhança de Richard, contra os argumentos de Sen. Em meio a tudo isso, o Cláudio do De Gustibus ajudou na divulgação do debate aqui e aqui.
Meu pequeno comentário em relação a todo esse debate, cujo pontapé inicial foi questionar se A pode invadir a propriedade de D para impedir que B mate C:
A minha formação convencional como economista levava-me a confundir o conseqüencialismo com o utilitarismo de forma bastante errônea. Indubitalvelmente, o conseqüencialismo é uma característica marcante da ética utilitarista, mas um outro componente fundamental do utilitarismo é que a avaliação dos estados baseia-se apenas no espaço das utilidades: não é qualquer conseqüência benéfica que conta, apenas aquela cuja métrica é a utilidade. Esse componente é chamado de "welfarismo" por Amartya Sen.
É bastante claro o problema de interdependência das situações apresentada pelo questionamento. O que Richard e Stein disseram (e Nozick e outros libertários radicais concordariam certamente) é coerente, mas nossa intuição moral dificulta a aceitação desse ponto de vista. Joel deixou bastante claro isso no seu post. A crítica comum às propostas éticas baseadas puramente em princípios, ou seja, desconsiderando conseqüências, é a de que haverá situações de impasse sério e a solução proposta pelos seus defensores será no mínimo questionável. Na ética pessoal, o exemplo do oficial da SS questionando se algum judeu está ali para um kantiano que esconde um judeu no porão e não pode mentir para não desobedecer a lei moral (pessoas não devem ser objetos, mas somente fins) é clássico. A questão da invasão de propriedade alheia para evitar um homicídio é algo parecido. Qual é a resposta para esses impasses?
Se esqueceremos o "welfarismo", podemos ser conseqüencialistas levando direitos em consideração. Podemos afirmar que o gozo de direitos é um bem em si mesmo, levando em conta isso na análise conseqüencial. Ou seja, atribuindo valor intrínseco aos princípios mas de forma que eles entrem no cálculo das conseqüências, podemos chegar a algum método de avaliação que talvez não forneça respostas claras e logicamente "inquestionáveis", mas que não leva a respostas implausíveis do ponto de vista intuitivo, como as dos exemplos acima mencionados. Ainda não posso afirmar que sou um adepto dessa visão (que vem de Amartya Sen, esse quase pop-star), mas sou simpático a ela.
Bem, dirão os libertários, o "intuitivo" é minha concepção pessoal de "bem". Mas a ética derivada a priori baseada em princípios também parece ter problemas na sua aplicação. O que Drumond diz no comentário que ele faz no post do Joel é pertinente. Precisamos explicitar melhor certos detalhes dessas proposições.
Por último, um comentário acerca das posições de Richard e Stein no caso específico de alguém sendo estuprado no gramado do vizinho (um exemplo prático e levemente modificado da pergunta inicial). Ambos dizem que tentariam impedir o estupro invadindo a propriedade alheia, mas saberiam que não haveria nada de errado caso o proprietário quisesse indiciá-los por terem infringido uma regra derivada do direito natural. Na melhor das análises econômicas, esse conjunto de regras se de fato aplicado levaria ao pior dos sistemas de incentivos. Lembrando que, para os economistas, os incentivos tem lugar de destaque quase tão absoluto - mas ainda pouco longe, graças a Deus - quanto o ocupado pelo direito natural na visão dos austríacos radicais anarco-capitalistas.
Meu pequeno comentário em relação a todo esse debate, cujo pontapé inicial foi questionar se A pode invadir a propriedade de D para impedir que B mate C:
A minha formação convencional como economista levava-me a confundir o conseqüencialismo com o utilitarismo de forma bastante errônea. Indubitalvelmente, o conseqüencialismo é uma característica marcante da ética utilitarista, mas um outro componente fundamental do utilitarismo é que a avaliação dos estados baseia-se apenas no espaço das utilidades: não é qualquer conseqüência benéfica que conta, apenas aquela cuja métrica é a utilidade. Esse componente é chamado de "welfarismo" por Amartya Sen.
É bastante claro o problema de interdependência das situações apresentada pelo questionamento. O que Richard e Stein disseram (e Nozick e outros libertários radicais concordariam certamente) é coerente, mas nossa intuição moral dificulta a aceitação desse ponto de vista. Joel deixou bastante claro isso no seu post. A crítica comum às propostas éticas baseadas puramente em princípios, ou seja, desconsiderando conseqüências, é a de que haverá situações de impasse sério e a solução proposta pelos seus defensores será no mínimo questionável. Na ética pessoal, o exemplo do oficial da SS questionando se algum judeu está ali para um kantiano que esconde um judeu no porão e não pode mentir para não desobedecer a lei moral (pessoas não devem ser objetos, mas somente fins) é clássico. A questão da invasão de propriedade alheia para evitar um homicídio é algo parecido. Qual é a resposta para esses impasses?
Se esqueceremos o "welfarismo", podemos ser conseqüencialistas levando direitos em consideração. Podemos afirmar que o gozo de direitos é um bem em si mesmo, levando em conta isso na análise conseqüencial. Ou seja, atribuindo valor intrínseco aos princípios mas de forma que eles entrem no cálculo das conseqüências, podemos chegar a algum método de avaliação que talvez não forneça respostas claras e logicamente "inquestionáveis", mas que não leva a respostas implausíveis do ponto de vista intuitivo, como as dos exemplos acima mencionados. Ainda não posso afirmar que sou um adepto dessa visão (que vem de Amartya Sen, esse quase pop-star), mas sou simpático a ela.
Bem, dirão os libertários, o "intuitivo" é minha concepção pessoal de "bem". Mas a ética derivada a priori baseada em princípios também parece ter problemas na sua aplicação. O que Drumond diz no comentário que ele faz no post do Joel é pertinente. Precisamos explicitar melhor certos detalhes dessas proposições.
Por último, um comentário acerca das posições de Richard e Stein no caso específico de alguém sendo estuprado no gramado do vizinho (um exemplo prático e levemente modificado da pergunta inicial). Ambos dizem que tentariam impedir o estupro invadindo a propriedade alheia, mas saberiam que não haveria nada de errado caso o proprietário quisesse indiciá-los por terem infringido uma regra derivada do direito natural. Na melhor das análises econômicas, esse conjunto de regras se de fato aplicado levaria ao pior dos sistemas de incentivos. Lembrando que, para os economistas, os incentivos tem lugar de destaque quase tão absoluto - mas ainda pouco longe, graças a Deus - quanto o ocupado pelo direito natural na visão dos austríacos radicais anarco-capitalistas.
Comentários
"Na melhor das análises econômicas, esse conjunto de regras se de fato aplicado levaria ao pior dos sistemas de incentivos."
Perdoe a ignorância, mas o que exatamente v. quer dizer por "sistemas de incentivos"?
Escrevi pressupondo que todo mundo estudou economia. O erro foi meu!
Bom, é o seguinte: embora alguns anarco-capitalistas dizem que salvariam a estuprada invadindo a propriedade alheia, eles não teriam incentivos para fazer isso (tirando o moral) - na verdade eles seriam desincentivados a fazer isso pois o custo poderia ser alto. Imagine que, por ter invadido a propriedade, eles pudessem ser presos ou ter que pagar uma multa altíssima. Quantas pessoas não deixariam a moça ser estuprada, o bebê se afogar ou um indivíduo ser espancado até a morte? Na prática, esse tipo de sistema levaria a mais mortes, porque as pessoas teriam incentivos a deixar pessoas morrerem, uma vez que não é obrigação delas segundo os anarco-capitalistas.
Aliás, a sua própria objeção contra os anarco-capitalistas é moral. Você acha muito feio eu não poder sacrificar os direitos de um terceiro para salvar alguém. Isso não é moral?
Eu também tenho valores morais, sou cristão como você. A diferença é que eu não acho que o Estado deva legislar sobre moral.
Eu gostaria de saber sua opinião sobre o conceito de Guerra Justa do Aquinas. Você concordaria com uma internvenção militar para salvar o povo de um ditador? Você acha que existe uma obrigação moral em salvar alguém que está em perigo se você se considerar apto para tanto?
Eu pergunto isso, pois se você disser que não, então você se contradiz.
Eu só não diria que os direitos são bens em si mesmos, mas sim que são bons porque nos possibilitam se aproximar melhor do bem, do fim último de toda ação humana, que é a felicidade.
E o que é a felicidade humana? É aqui que utilitaristas e aristotélicos discordam.
Para o utilitarista, o bem para a pessoa é aquilo que ela considerar bom. É um erro equiparar o utilitarista a um hedonista carnal e rasteiro. Não, para eles o bem da pessoa pode ser constituído de ações nobres e elevadas, do estudo, da prática da caridade, etc, SE a pessoa assim o quiser.
Não há, para eles, uma natureza humana que valha para todos os homens. Assim, para cada homem, o que ele gostar é o bom para ele e ninguém pode julgar isso, pois preferências são totalmente subjetivas.
Já para o aristotélico, não: exista uma natureza humana. O homem que gosta de passar seus dias fuçando na lama pode estar satisfeito com sua condição, mas não é verdadeiramente feliz enquanto homem.
O bom homem, aquele que é homem no sentido mais pleno, preza antes a vida racional. E é esse, o homem bom, o homem virtuoso, que é a medida do bem humano.
Do ponto de vista subjetivo, talvez ambos (o virtuoso e o vicioso) sintam o mesmo prazer; mas somente um deles, o virtuoso, conhece realmente a vida mais elevada à qual o homem é capaz, e é também ele que contribui mais para que outros se aproximem desse estado.
Um copo pequeno e um grande podem estar igualmente cheios; mas um deles tem muito mais água que o outro.
postei isso no meu blog:
http://depositode.blogspot.com/2007/12/radicalismo-e-principos-quando.html
acho que explica um pouco melhor o meu ponto
Continuando nosso debate, amigo.
Evidentemente o incentivo para salvar a pessoa � moral. Mas o incentivo a n�o salvar a pessoa pode ser pelo poder coercitivo do Estado, que pune o invasor de propriedade em qualquer situa�o.
Bom, um Estado que cria regras que defendem o direito natural implica o Estado se metendo em moral. Ou seja, qualquer Estado se mete em moral.
Nesse caso, melhor pensar como o Richard. Adeus, Estado.
Sim, minha vis�o � moral.
Sim, posso at� estar em contradi�o l�gica. Mas pra mim problemas morais n�o se resolvem somente pela l�gica, como tamb�m concorda o Joel.
Valeu pela aula de Aristóteles. Do jeito que tu colocou, o Richard e o Stein vão falar que isso justifica obrigar a pessoa a alcançar esse bem aristotélico. Mas lembremos todos que os direitos podem estar incluídos no raciocínio conseqüencialista - ou seja, posso continuar defendendo liberdades políticas, ao lado de outras coisas (que tem raízes dessa nessa idéia aristotélica de bem humano)... e daí precisamos de critérios para saber o que fazer em situação de conflito. É essa a idéia.
Bom, Joel, não sou aristotélico-tomista, mas nem por isso vou ser contra qualquer idéia originária desses grandes pensadores, até porque conheço pouco. Os luteranos tem uma herança mais neoplatônica via Agostinho.
Procuro um artigo teu sobre Sen, que está prelo, foi aceito, mas ainda não foi publicado. Poderias me passar teu mimeo? Grata, Gabriela (mestranda@gmail.com)